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19.6.08

PRECÁRIA

Aquele habitual erro de cálculo. Mais curta do que o previsto a distância entre o bordo exterior do dedo mínimo e o bojo do copo na beira da mesa. Foi por isso que o homem pegou na pá e na vassoura e lhe disse que não havia azar, não se preocupasse. A incomodidade dela em evidência no apertar das mãos, no olhar em círculos pela sala. Ele a varrer os cacos, alguns em viagem desmedida até outras mesas. Acontece. A maçada que eu lhe fui dar. Maçada nenhuma. Até gosto de limpar chão. Ela não percebeu o sorriso de lábios apertados. Era o meu trabalho antes de sair em precária. Batida pela palavra mal conhecida, refeita do recente desassossego, voltou a sentar-se. Farejando história de contar baixinho, ajeitou a cadeira ao corpo e aguardou. Os sólidos a caminho do contentor. O homem desaparecido por instantes por detrás da porta encimada por tabuleta de madeira que dizia ARRUMOS. Sabia que ele voltaria, para os líquidos derramados, com balde e esfregona. O sorriso fininho permanecia. Pareceu-lhe mais novo. Repegou o discurso, junto à mesa dela. A cela andava sempre um brinquinho. Caí nas graças do chefe. Não tenho dele a mínima razão de queixa. Fiz lá amigos. Quando voltei da precária foi uma festa. Havia de tudo, está visto, mas é como em todo o lado. Há bom e mau. Curiosa e ligeiramente sobressaltada, procurando frases para a troca, mas nada. Um homem a contar-lhe a sua história negra sem largar o sorriso fininho. Finalmente, arrancou Tem saudades? E logo se arrependeu. O homem parou de enxugar o chão, sorriu mais largo e disse, baixinho, com orgulho, cara a cara Tenho. Posso dizer. Já em direcção aos ARRUMOS, alteando a voz Fiz bem em não querer casar. Paguei. Ela fez a vidinha dela. Eu a minha. Foi no tempo em que éramos vivos...

FIM

Licínia Quitério

11.6.08

O ROUPEIRO (3º. episódio)

F. sobressaltou-se quando deu consigo a desejar com alvoroço a hora da bica. Em casa, ao serão, em frente ao televisor, não parava de pensar nos decotes em V pronunciado da Menina H., nem nas ancas reboludas, de movimentos largos a que os saltos altos marcavam a cadência. Era pequenina.”Mignone”, tinha ele aprendido a dizer. E nos balões de banda desenhada dos seus pensamentos mais íntimos já só a tratava por H., sem Menina.
Assim começou um caso que escaldou a vida morna do F. Dactilógrafo. Nem ele sabia explicar como é que, numa tarde de sol desmaiado de Outono, numa pensão baratucha de Almirante Reis, o F. se desforrou de tantos anos de abstinências forçadas, de sessões insípidas de sexo de sexta-feira à noite. A H. tinha ardores de trintona temperados com pudores de donzela. Embora dissessem que os prazeres da carne tinham a ver com o Inferno, F. achava que o corpo dadivoso de H. era uma bênção do Céu. Concluía, de bem para consigo próprio, que pecado seria recusar a felicidade na Terra. Acudia-lhe à ideia ingratidão de pobre rejeitando bife. E sorria, à boca pequena.
Para estupefacção dos colegas, F. abandonou o casaco verde seco e comprou farpela toda nova: um “blazer” azul escuro com botões prateados, calças beijes, sapatos de luva, pretos, reluzentes. A pasta de aluno de escola foi substituída por maleta de executivo, porém suficientemente espaçosa para transportar o almoço. Não havia dúvidas, o F. remoçara. Parecia até menos gordo e pesadão. Cantarolava baixinho, enquanto teclava. Usava água-de-colónia a inundar o escritório de frescura barata. Às piadas brejeiras, repontava: “Vocês não me digam nada. Eu ainda sou um homem novo, caramba! Onde é que está o problema?”. Não acedia a contar pormenores. Da vida lá em casa, nem uma palavra. “A minha mulher, coitadita, é uma santa”. Dava o assunto por encerrado, mão aberta a rasoirar os ares.
Com o decorrer das semanas, a H. tomara-se de atrevimentos. Vinha esperá-lo à saída, saltitante, cumprimentando com sorriso dengoso alguns colegas do F. a quem ele apresentara como “A minha amiga H”.
Comentava-se que ele ia deixar a mulher. Como iria descalçar aquela bota? Oxalá não se arrependesse. É que a H., bem vistas as coisas, não tinha lá muito boa pinta. Dizia-se por aí que tinha uma rodagem que Deus nos livre. Enfim, ele lá saberia as linhas com que se cosia.
Chegou o dia em que o F., com um ar misterioso, previamente ensaiado, confessou aos colegas mais chegados que pensava ir viver a tempo inteiro com a H. Era assim a vida. Tinham já tudo organizado. Uma casinha pequena, arrendada nos arredores, coisa muito modesta, quarto, salinha e pouco mais. Quase um amor e uma cabana, pois. Só faltava resolver o problema do roupeiro. A H. prezava o seu grande armário em que guardava a numerosa fatiota. Tinha lá aquele fraquinho pelos trapos. Gostava de se apresentar bem. Mas o roupeiro quase de certeza não caberia no novo ninho.
Preocupado com este pormenor de instalação, o F. passou a andar munido de régua, esquadro e até de um transferidor dos tempos angulosos da escola. Demorava-se a rabiscar desenhos, a anotar medidas, a fazer contas complicadas de cabeça, olhando o tecto com os olhos semi-cerrados. Ouviram-no mesmo telefonar a um amigo desenhador de máquinas. Andava com um pequenino problema. Talvez ele pudesse dar-lhe uma ajuda. Até se sentia envergonhado por ter de o incomodar por aquela ninharia. Quando desligou, uma ruga exibiu-se ondulante no sobrolho. “C’os diabos! Uma pessoa rebaixa-se a fazer um pedido de nada e é a resposta que leva. Qual? Ó homem, isso é querer meter o Rossio na Rua da Betesga. Um pateta, armado em engraçado”.
O tempo foi passando e alguém mais observador comentou que o F. andava soturno. Deixara de cantarolar e agastava-se quando tentavam puxar a conversa dos amores. Ali havia coisa. Algo não corria bem. Até que, num dia baço de Inverno, olhando a chuva miudinha que escorria pelas vidraças, riscando distraidamente com a unha o tampo da secretária, falando não se sabe se para si próprio se para os circunstantes, deixou cair num desalento: “Está tudo acabado. O roupeiro não cabe.”
Foi essa a razão por que a vida voltou à mansidão de outros tempos. As peças do xadrez retomaram no tabuleiro as suas casas de origem. Só o casaco verde seco não voltou a ser vestido. E, verdade, verdadinha, o olhar do F. não reganhou a moleza de antigamente. Bem lá no fundo, ficou uma faulhazita de lume mal apagado, denunciando a esperança num outro roupeiro, desta vez mais maneirinho.
Ainda ontem escreveu em maiúsculas, numa folha A4 que depois amarrotou e deitou, descuidado, para o cesto dos papéis: SOU UM HOMEM MUITO NOVO, CARAMBA!


FIM


Licínia Quitério

3.6.08

O ROUPEIRO (2º. episódio)

Davam depois um passeiozinho à beira-mar, o braço dele oblíquo, a enfiar no dela. Não há melhor que este sol e este cheirinho a maresia. Saía-lhe um arroto que ameaçava sonoridades inconvenientes, logo travadas por um apertar de maxilares e uma pressão forte dos três dedos maiores da mão apressada. Com licença! E o olhar dela, de través, reprovador. Desculpa, filha, não pude evitar. Regressavam a casa cedinho, para evitar as bichas, essa praga que dá cabo dos nervos a um homem e obriga a um despesão em gasolina. Já para não falar no desgaste da “embriage”, com aquele para-arranca, para-arranca… Resumia o quadro, queirosianamente: Uma seca, menina!
Corriam assim as semanas, os meses, os anos. Todo o tempo arrastado num bocejo de felino, a vida num tabuleiro de xadrez arrumado, cada peça imóvel na sua casa originária, à espera dos jogadores.
Na rua do escritório que dava trabalho ao F., havia outros escritórios onde seres seus semelhantes se ocupavam de tarefas igualmente monótonas, sublinhadas por gestos sempre iguais, repetidos até à sonolência, como se de digestão de almoço desmesurado se tratasse. F. conhecia os seus homólogos, de se cruzar com eles diariamente, nos mesmos quarteirões, às mesmas horas.
Depois do almocinho de lancheira, num desvão do escritório, pomposamente chamado de bar, ia tomar uma biquinha à Pastelaria Mèlita, ao balcão exíguo, mas onde, com boa vontade, cabia ainda muita gente. Do lado de lá do balcão, moviam-se, com grande incómodo, os donos, dois irmãos que obviamente se odiavam, e um pobre empregadito que ambos maltratavam, descarregando sobre ele os rancores espartilhados por um pacto social firmado nos tempos em que decidiram juntar os magros pés-de-meia e tomar de trespasse o pequeno café. Acreditavam que uma sociedade entre irmãos seria coisa para prosperar e durar. Os laços de sangue para alguma coisa haveriam de servir. Enganaram-se. A exiguidade do espaço e dos afectos vinham corroendo as bases da sociedade e hoje dificilmente disfarçavam semblantes carregados e congestionados, pragas inaudíveis arranhando-lhes as gargantas. Mas a clientela não tinha de sofrer por isso. Era indispensável segurá-la, tratando-a com mimos. Um dos irmãos, um celta puro, de Arcos-de-Valdevez, arrepanhava os lábios finos e desbotados e ordenava: sai uma bica para o Senhor Doutor X, ou para o Senhor Engenheiro Y, ou para o Senhor Major Z, ou para a Menina Alicinha. Identificavam meticulosamente os clientes. Quem lá fosse mais do que uma vez seria de pronto investigado, de molde a poder ser tratado pelo nome, oportunamente precedido do título académico, se fosse esse o caso. Era um ponto de honra da casa. Na Mèlita não podia haver anónimos.
A Menina H. também tomava bicas na Mèlita. De tantas vezes se encontrarem ao balcão, o F. começou a esboçar um cumprimento. Bons Dias, Menina. Seguiram-se os sorrisos, as frases curtinhas, até que o diálogo se deixou desatar. Tímido, o F. falava do tempo que fazia, deste calor abafado que nos faz transpirar, e deitava um olhar brilhante às pequeníssimas pérolas de suor no buço discreto da Menina H. Acabavam por sair juntos, a despedirem-se por alturas do escritório dela, com um até amanhã de olhos nos olhos. Dias passados, já se apertavam as mãos, sem grandes delongas, tudo muito respeitosamente.

(continua)

Licínia Quitério

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