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18.7.10

CRÓNICA DE DESVARIOS

Era nas tardes de calor que a podiam ver sentada na beira do lago, um chapéu de palha a cobrir-lhe a cabeça, uma perna pendente a baloiçar devagarinho, as mãos sobre o colo, num abandono de sesta. Indiferente a quem passava, atenta aos peixes, nos seus movimentos rápidos, de sentidos imprevisíveis, provocando pequenas turbulências, remoinhos, ondulações, desassossegos na mansidão da água. Um movimento contínuo, silencioso, fresco. Via-os crescer, encorpar nas suas peles esverdeadadas, ou douradas, ou negras, ou vermelhas, ou feitas de muitas cores. Ninguém a conhecia. Passaram a chamar-lhe a senhora dos peixes. Nunca lhe ouviram uma palavra. Talvez fosse muda, como os peixes, e se entendessem na comum mudez. No fim do verão deixou de aparecer. O lago parecia mais triste sem a senhora dos peixes com o seu chapéu de palha e a perna baloiçando devagar. Ninguém soube explicar como no meio do lago nasceram duas hastes de bambu que cresceram muito segundo a sua condição de elegância e resistência. Uma delas, apenas uma, a meio da tarde, houvesse vento grosso ou aragem fina, bamboleava-se por uns instantes, devagar, para cá, para lá, enquanto os peixes descreviam círculos como danças em redor das torres finas, verdes, silenciosas. Ao crepúsculo, um olhar mais atento podia ver uma sombra projectada na fundura do lago, cuja forma, dizia-se, se assemelhava a um pequeno chapéu. Só os peixes poderiam desvendar os mistérios do lago, mas eles não falam e, se é verdade que não dormem, não têm sonhos, os peixes. Deixam essa tarefa para as senhoras que aparecem e se sentam e balançam uma perna e depois desaparecem quando crescem novas hastes de bambu.

Licínia Quitério

11.7.10

CRONICA DO QUOTIDIANO 2

Gosto de lá ir. Não é como no supermercado. A porta está sempre escancarada ao vento áspero da minha terra. Também não é a feira em campo aberto. Tem telhado e paredes sólidas. Não há azáfamas. Só umas pequenas pressas de um “pexinho” para cozer ainda para o almoço, dos pimentos para a sardinhada de domingo, de dois parrameiros para matar as saudades da amiga que virá passar a tarde connosco.

Vai-se à praça dar uma espreitadela. Da entrada, abarca-se com o olhar os tabuleiros mais distantes, semi-cerrando o olhar, aconchegando o casaco a afastar um súbito arrepio. O ar da praça, àquela hora da manhã, é lavado e fresco. “Ó senhora Estrudes, estas nabiças são de hoje?”. “Atão não haveram de ser, valha-a Deus. E olhe! Trazia quarenta mãos delas e só há o que vê”. “E quanto custa isso?”.“Por ser para si, e só para não dizer que as levo para casa, faço-lhe os dois molhos por trazentos escudos”. “Duzentos?” .“Traazentos”!, confirma, enquanto remexe os trocos no bolso fundo da bata e faz vaguear o olhar matreiro pelos ares, fingindo ignorar que ainda ali estou. Divirto-me com este toca-e-foge. “Não, não quero.”. Retiro-me devagar, dando-lhe o tempo preciso para me chamar. “Psst! Ó menina!” (Só aqui me chamam ainda de menina.). ”Leve lá por duzento xinquenta. Ai, isto não tá p’ra ninguém.”. Cumpriu-se o ritual do negócio. Na minha terra, como em qualquer Marrocos deste mundo.

Na praça está o Senhor Paulo que só tem um dente. Os outros foram ficando pela côdea do cascudo, pela coxa dura de roer da poedeira que deixou de cumprir. Faz contas de cabeça, com rapidez, sonorizadas por uma imperceptível ladainha. Acabado o exercício, afasta o boné para trás, coça o alto da cabeça com a unha negrita do dedo médio e atira o resultado com ar falsamente envergonhado: “Não sará assim?”. “É, claro. O senhor é uma máquina.”. Um sorrisinho de orgulho indisfarçado, os olhos em baixo. “Como um comportador?”. E o sorriso explode em gargalhada rouca e breve.

Na praça conversa-se, de lugar para lugar. É preciso enganar o tempo. “Ó priga, qué feito da tu mãe? Há canto tempo ná a vejo!”. “Tá rija e tesa. Tomara você e eu chegar à idade dela com aquela genica toda. Ah mulher dum sacana! Vai a caminho dos satenta e nove. Faz em Dezembro se lá chegar, se Deus Nosso Senhor quiser. Só lhe digo que inda onte mondou umas leiras de nabiças que só queria que você visse.”.

Na praça as freguesas encostam-se aos tabuleiros. Primeiro ao de leve, só a redondeza da barriga a roçar a moldura. Depois, perante o aproximar de uma conhecida, apoiam o braço, com firmeza. Ficam um bocadinho por ali, a falar. Dos achaques. “Com este tempo húmido, tenho andado à rasquinha aqui deste artelho. Atão na cama, mulher, nem queira saber, parece formigas a subir pela canela da perna. Os anos não perdoam. Isto tem andado mesmo bera.” Dos mortos. “Coitado, parece que vendia saúde, sempre com uma graça, inda a semana passada tive com ele nas Finanças.” .Dos pequenos escândalos. Aqui, a mão em concha encobre meia boca e da outra metade a fala jorra mansa, a prenunciar confidências, a fazer a outra aproximar discretamente o ouvido, a olhar para o chão e a desviar com o pé um recorte de folha de couve… “Isto é um perigo. Não é preciso mais para partir uma perna. Lagarto, lagarto, lagarto!” .Feito o esconjuro certo, não vá o Diabo tecê-las, vão ao que interessa: “Disseram-me há bocadichinho que a Nela… Sim, a Nela, a filha da Ti Canetas. Não conhece você outra coisa. Aquela que morava por cima do Xico da Jula. Ó mulher, como é que lhe hei-de explicar? Aquela que andou metida com o marido da Marimelinda. Pronto. Já tá a ver quem é? Tava a ver que não era para hoje. ”A curiosidade bem espicaçada. A conversa promete. A outra ajeita o travessão que lhe prende o cabelo já grisalho. “Quando era rapariga, tinha uma trança de cabelo a meter inveja a qualquer uma. Da grossura deste punho. Agora, é estas farripas que tão à vista. Ó mulher, vamos ali mais para aquele lado que a gente tamos a estorvar.”. Vão. Para ficarem. Longamente.

A praça é assim. Não é como o supermercado. Ainda há tempo para dois dedos de má língua. “Ora, tudo faz parte da vida! E, a bem dizer, isto não é dizer mal de ninguém. Se não for verdade, estou a vender pelo mesmo preço que comprei.”.

Na praça não há artigos empacotados. O senhor Joaquim tem o tabuleiro tão desarrumado que a rama das cenouras espreita por entre os nabos e os limões. Mas, se procurarmos bem,( “Prècure a senhora à su vontade!”), por baixo de toda aquele emaranhado, encontramos umas beterrabas gorduchas. “Já me têm dito que faz bem ao saingue. Dizem, que eu cá disso não sei nada. E não quer também um pipino? Olhe que lindo!”.

Na praça não há cogumelos, nem rebentos de soja, nem papaias, nem tarambolas. Nomes e cheiros que nos chegam de longe. Mas, no tempo certo, na praça aparece planta de tomateiro e cebolo. Para dispor, claro. E flores! Não, não são as das floristas. Segadas com a foice da erva para os coelhos. “Sim, senhora, dou erva aos meus. Tá visto que comem reção, mas só p’ra variar. E a carne fica logo com outro sabor.” Ah, sim, as flores. Todas juntas, à laia de natureza morta em quadrinho de feira. Um ramalhete de rosas, de mistura com uns agapantos, uns malmequeres. “Quer uma pernadinha de zipsofila? Fica muita bonito com as rosas. Pronto, a senhora só leva o que quer”. Tudo borrifado. Foram apanhadas bem cedinho e metidas em garrafas de plástico cortadas a meio. “Dálias? Nã senhora. Tenho-as lá em botão. E é cada um! Lá p’ra semana, ou p’ra outra, já as tenho abertas. Sim, daquelas dobradas. Lindas!”.

No supermercado não há fruta com bicho. Na praça ainda há. É sinal que não levou produto. “Palavra. Coisíssima nenhuma. Disto pode a senhora levar à confiança. Até se dá às criencinhas. Os meus netos não querem outra coisa. Tadinhos. Lá em Lisboa na apanham disto. Olhe este pêro vermelhinho. Feio? Doce comó mel. É o que lhe digo. P’ra qué queu tava a enganar a senhora? Já não quer os limões? Prontos, eu desarrisco. Todos os males fossem esse.”.

Na praça há sempre falta de sacos de plástico. Bastas vezes, são as freguesas que os juntam em casa e os levam aos fornecedores do costume. “Obrigadinha! Que Deus lhe dê saúde e a mim que não me falte.”.E assim se sai da praça com as compras em sacos exibindo logotipos das grandes superfícies de venda. O mesmo para os ovos. “Quando a senhora tiver lá caixinhas, não as deite p’ro lixo. Se se alembrar traga, que a gente tem sempre precisão.”. A praça vai assim promovendo a reutilização. Não protesta contra os gigantes da concorrência. Aceita-os com conformismo e aproveita-lhes os despojos.

Na praça não se compram ervas aromáticas. A salsa, os coentros, a hortelã, muitos pés com raízes e terra húmida agarrada, são dados, como brinde, aos fregueses bem comportados. Talvez por isso, quase nunca estão à vista. Debaixo ou por detrás dos tabuleiros, meio tapados. Só para quem merece. “Que ele há para aí umas madamas com ares de que todos lhes devem e ninguém lhes paga. Coitadas. Umas cagonas, desculpe a senhora. Vai-se a ver, umas pelintras que não têm onde cair mortas. E a porem defeitos em tudo, com ar de enjoadas. Para essas, não há nada. Nadinha. Prefiro migar tudo e dar aos animais. Isto que a senhora aqui vê é cebola para aturar uns tempos. Qual da Espanha! Essa, a senhora pode pagar menos, mas não vale nada. É o que eu lhe digo. É reles, reles a valer. Esta é da nha horta, quer dizer, da horta do mê filho. Não, na é ele que amanha. Ele tem outras vidas. A gente nova hoje já não quer saber da terra pra nada. Agora é tudo dòtores. Também tou de acordo, sim senhora. Saber mais nunca fez mal a ninguém. Eu cá sou um estúpedo. Não conheço uma letra do tamanho do convento.” O Convento é inevitavelmente o padrão de medida para quem lhe conheceu a sombra. “Cá me tenho governado. Claro, também sei muita coisa que os mais novos não sabem. Mas isso é a senhora que pensa assim. Adiente. Faço a continha ou leva mais alguma coisa?”.

Na praça as conversas são sonoras, sincopadas, metafóricas, vivas. Têm o cheiro agridoce dos coentros e alguma mordacidade das malaguetas. Nascem do pó da antiga linguagem camponesa. Denunciam amiúde a sedução pelas telenovelas brasileiras. É quando as línguas se soltam e os gestos ganham algum nervosismo. “ Aquilo é tudo uma fantochice, mas distrai a gente. É melhor que tar a ver desgraças. Era escusado era mostrarem tanta desavergonhice. Se eu alguma vez na nha vida pensei ver coisas daquelas. Ó Joana, na viste onte aqueles na cama? É pessoal, até fazia faísca!”. Dura pouco o desvario. “Isto é o fim do mundo, é o que eu te digo.”.

Na praça percorrem-se velhos caminhos que nos trazem à memória a espessura do caldo de grandezas e misérias que incorpora a nossa mais profunda ruralidade.

A praça é bem diferente do supermercado. Gosto de lá ir. E de a ouvir.


Licínia Quitério

Nota: Esta crónica foi escrita há uns anitos, antes da criação da ASAE. Muita coisa já mudou. Fica o registo.

9.7.10

CRÓNICA DO QUOTIDIANO

Assomou ao patamar dos degraus de mármore que davam acesso ao piso inferior. Deteve-se por instantes.

Havia um número considerável de fregueses na zona do peixe fresco. Um vozear de mulherio percorrendo as bancadas, avaliando tamanhos, preços, grau de frescura. Pareciam muito zangadas as mulheres, não encontravam o que queriam e já iam na segunda volta. Poucos os homens, esses calados, dando só uma volta. Os vendedores gritavam, uns para os outros, com vozeirões de sotaque de mar, arrastado. O chefe dos vendedores, tinha de ser o chefe, distribuia ordens a torto e a direito e respondia de vez em quando, só de vez em quando, a perguntas dos fregueses. Era um chefe que trabalhava muito, tanto que nunca parava de arranjar peixes grandes, médios, pequenos. Tinha uma faca enorme com que os cortava, batendo-lhes com a lâmina, sem olhar, com desprezo, acertando quase sempre. Antes do corte, era a escamação feita igualmente sem olhar o peixe, como quem os sabe todos de cor. Arrepiadas pela ferramenta de longos bicos, como pregos, as escamas saltavam, espalhavam-se, polvilhavam tudo em redor como vidrinhos baços. E subiam bem alto algumas delas, a avaliar pela quantidade que forrava o boné do chefe, um tanto descaído para trás de modo a que as melenas dianteiras também fossem ocupadas pelos vidrinhos. Escamados e cortados, os peixes eram atirados para um tanque de água, ligeiramente afastado do chefe que nunca saía do seu lugar. De vez em quando a água saltava, transbordava, salpicava a freguesia que dizia em coro: “Eh lá!” e dava um pequeno salto à rectaguarda.

Era esse o momento de acalmia por que esperava para descer a escada. Certeiro. O chefe viu-o, abriu os braços, sem largar a escamadeira, o peixe descansando sobre a bancada, e atirou no seu tom mais alto: “Olha o senhor Alcides. Olha o senhor Alcides. Já tínhamos sentido a sua falta.”

O senhor Alcides trazia dois sacos enormes e o chefe arregalou os olhos para eles. Parado a meio da escada, bem olhado agora por quase todos os compradores. “Estou de volta, amigo”.” E bem, a ver pelo aspecto, senhor Alcides”.

Terminou a descida, sorridente. “Aquilo é outro mundo, Amigo! Outro Mundo!” “Não leva a mal se perguntar aonde?” “Na República, na República.” Os olhos do chefe, por entre as escamas, eram duas interrogações. E o Senhor Alcides, perante a ignorância óbvia, explicitou: “Dominicana, Amigo. Há outra?” “Claro”, disse o chefe. “E peixinho há por lá muito?” “Se há! O Amigo pode não acreditar, mas falámos  em si muitas vezes por causa disso.” “Então valeu a pena?” “Se valeu. Aquilo é outro mundo, outro mundo, digo-lhe eu.” “E então o que é que vai hoje, Senhor Alcides?” E passou à frente de todos os outros fregueses portadores de sacos pequenitos.

Um homem viajado, o senhor Alcides. Tinha estado na República. Fregueses daqueles contavam-se pelos dedos de uma mão. Tudo o resto, uma pelintragem, voltas e mais voltas para levarem pouco e baratinho. Forrado de escamas, o chefe aviava o senhor Alcides do bom e do melhor e ia pensando: “Raios me partam se um dia não vou também à República. Quando voltar nem me conhecem”. Com o antebraço tirou uma escama que lhe saltou mesmo para o olho direito. “E hei-de dizer bem alto: Aquilo é outro mundo, outro mundo.”

Mesmo por entre as escamas, um homem pode ter sonhos de viagens.


Licínia Quitério

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