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29.12.11

LUZ



Um feixe de luz a acender as sedas, a aquecer as lajes, a acautelar o frio da noite. É o meio do dia. É o sorriso deste dia.

LIcínia Quitério

28.12.11

QUEM TE FERIU?




Quem te feriu assim, de machado ou palavra ruim? Quem te tirou um braço há muito levantado? Quem te escutou o choro da seiva derramada? Quem te afrontou, ofendeu, magoou? Já não te lembras, amiga. Saraste, calaste a dor, novos braços criaste. Esqueceste o gume e ensaiaste novas primaveras. Da cicatriz fizeste sedução e ninho. Hoje todos os pássaros sabem o teu nome. 

Licínia Quitério

27.12.11

SOL DE INVERNO



O sol de inverno transfigura as cores, projeta sombras finas, alongadas, penumbras difusas, raras. Põe carícias desajeitadas nos relvados, estremecimentos corpóreos, afagos de amante fugidio. Há risadinhas por entre as folhas, aconchegos de pequeninas mãos, embalos de sono. Miniaturas que me chegam de outros invernos e se colam, benfazejas, nos meus olhos de água.


Licínia Quitério

21.12.11

SOLSTÍCIO



Será a noite mais longa e o dia seguinte o da nova Claridade. A Terra e o Sol festejam o cair do pano sobre o bailado anual dos dias e das noites. Logo, logo, a roda recomeça, num crescendo de luz, no anúncio, mais uma vez, do triunfo do cisne branco. Apesar do negro, apesar da morte. Celebremos!


Licínia Quitério

4.12.11

JARDINS




O plátano apronta o fato de inverno e despede as últimas folhas. O grande metrosídero mantem a perenidade da poderosa estatuária vegetal. O céu baço prenuncia humidades de fim de tarde. Impávida, a construção exibe os líquenes na geometria secular das pedras. São os jardins que nos veem chegar e passar e partir. Ninguém sabe o que murmuram quando a noite desce e não sentem os nossos passos.

Licínia Quitério

30.11.11

AS FOLHAS



Ouvi-as descer a rua, em obediência a um vento leve que anuncia dezembro. Um fervilhar sobre o asfalto, um arrastar de papel amarrotado, um quase impercetível silvo de réptil muito antigo. O meu plátano despe-se, reduz-se, enquista os sonhos de verão na mornidão das seivas e manda-me os recados anuais, nas folhas que roçam as sombras da minha porta. Abro e dou-lhes guarida na cesta do costume, onde se aprestam madeiras e pinhas para o fogo que virá, ainda que há muito extinto. Sairão as do ano passado, enrugadas, descoloridas, cansadas. Fico eu e as madeiras e as pinhas e as folhas novas e a lembrança das folhas velhas e a espera das outras a que hei de chamar novas, na voz redonda com que digo o tempo.


Licínia Quitério

29.11.11

LUGARES



Há lugares assim, onde a mansidão nos toca, por instantes, e nos dá a perceber a perfeição do universo, esse universo que vive na célula mais vibrátil do nosso corpo e na estrela mais brilhante da galáxia mais distante, que só em sonhos contemplamos.

Licínia Quitério

26.11.11

NOITE



Noite escura, em pélagos inconcebidos, em buracos negros, na vastidão sem outro nome que infinito. Noite de animais de gelo tão gelado que as brasas dos olhos não sabem derreter. Noite dos espíritos vagabundos, estropiados, desencarnados, temerosos da eterna desventura. Noite dos caluniados, dos esfomeados, dos alucinados, dos sós.

Noite de água e platina, do cio das rãs, do bailado dos vagalumes, dos tambores no longe, da sarça ardente, da lua.

Noite minha, noite de ninguém.

Noite.


Licínia Quitério

25.11.11

O RIO



Tão pequeno o rio grande dos meus anos. Um quase nada, mais de securas que de enchentes. Modesto rio, pouco sabe de barcos e de barqueiros de travessia. Sofre o rio quando os salgueiros choram, ou as canas assobiam, ou os choupos lhe crescem nas entranhas. Estremece, cintila, com a prata fervilhante das tainhas. Sabe tudo da vida e da morte dos que uma vez o olharam. É preciso saber falar com um rio assim. Em silêncio, com as mãos despidas, os pés firmes na curva da tarde, os olhos líquidos de memória. E esperar pela resposta que ainda não veio, mas virá. O pequeno rio grande nunca falha uma promessa.


Licínia Quitério

23.11.11

AMANHÃ SERÁ



Tombou em despedida, um fino arco luzente, lá nos confins da linha onde repousa o céu. Brilhante este dia que morre cumprindo as incertezas do outono. Sol que me aqueceu, me reconfortou os sentidos e me clareou os olhos de ver o mundo. Amanhã será. Amanhã serei.


Licínia Quitério

12.11.11

VENTANIA


Um desaforo! era o que diziam as mulheres de negro esconjurando a impertinência do vento súbito pela tardinha. Desrespeitador, desarrumador de formas e de cores, para não falar dos lugares, num ápice despidos ou vestidos do que há pouco se supunha estável, imutável, a bem dizer eterno, na medida da humana perenidade. Voa o que não tem asas e sobe, sobe, para logo poisar em qualquer campo, em qualquer degrau, em qualquer fenda, na cova mais funda das covas fundas,  no píncaro dos píncaros, no bolso do avental negro das mulheres de negro. Ah vento ruim! diziam os pescadores de mar roubado, com olhos arregalados como os dos peixes há muito perdidos. Vento dum cabrão! rosnava o Jacinto Coxo agarrado ao pau de fio que para ali ficara, tão sem préstimo como a sua perna definhada.

Clarisse afastava a cortina e deixava um leve, leve sorriso seguir o redemoinho das folhas das tílias. Estás tão despenteado! e não era  do vento que falava.

Licínia Quitério    

11.11.11

VOLTEI A OUVI-LOS



Voltei a ouvi-los na manhã de sol, com o frio da noite adormecido na relva do jardim. Não lhes vi o vulto, não lhes sei o tamanho, a idade, se a têm. A sua fala continua sibilante, entrecortada, de sílabas sem vogais, porventura apagadas por outros geniozinhos de maus humores e vizinhanças não desejadas. Era chegado de novo o tempo do concílio, em torno do pequeno arbusto, no seu dia único de florir. Só eu sei o que decidiram, mas não o posso revelar, sob pena de nunca mais serem visíveis a meus olhos as flores do desejo de aqui voltar, nos anos todos que me pertencerem.

Licínia Quitério

6.11.11

JÁ AQUI ESTIVEMOS



Já aqui estivemos, lembras-te? No tempo das manhãs frias e da teimosia daquele sol que não me deixava parar de sorrir. Havia patos. Ou cisnes? Já não me lembro bem. Sei que ficava longamente a olhá-los, a espiá-los até à casinha de juncos. Um tufo, claro, mas eu gostava de dizer casinha e tu abanavas a cabeça: Não ganhas juízo, miúda? Sim, ainda gosto de ver o que lá não está. Ou está e, garanto-te, chama por mim às vezes. Baixinho, baixinho. Pois, talvez sejam tontices de poeta. Quem dera... Porquê? Ora, porque doem. Agarram-se ao fundo dos fundos mais fundos da memória, esgravatam ínfimos grãos de uma cama salgada que não sei o que é, ou quem é, mas sei que fica em mim, no sítio de mim que nunca vi nem sei que forma tem nem sequer se já nasceu ou se morreu há muitos, muitos séculos, quando os cisnes, ou os patos, e tu e eu vivíamos as manhãs frias com a determinação das grandes aves de viajem. Vamos, sim, tens razão, com um café isto passa.

Licínia Quitério

1.11.11

A ESTRADA DE CLARISSE



"Não, não está escuro. Caminha de olhos fechados. Não tenhas medo. Sente a terra debaixo dos pés. Vai em frente, devagar. Não abras os olhos ainda. Sim, cheira a água do rio. E a ervas também. Continua. O rio não está no teu caminho. Ouves? As rãs. Ouves? As cigarras. Não, não pares. Não abras os olhos. Não tenhas medo. É bom, não é? Quando eu disser, só quando eu disser, abre os olhos. Espera um pouco. Caminha devagar, assim. Agora! Abre os olhos!".

Foi quando a luz das estrelas iluminou o caminho, as árvores, a prata do rio. O escuro ficou lá atrás, nos olhos cegos de outras luzes.

Ainda hoje, passada que foi a foz do rio, há uma voz no escuro a dizer: "Fecha os olhos. Vai em frente. Sente a terra." Depois é só esperar pela ordem: "Agora! Abre os olhos."

E a luz das estrelas volta a iluminar a estrada, limpos os olhos da cegueira dos dias.

26.10.11

AS PRIMEIRAS CHUVAS



São as primeiras chuvas depois da estiagem que outono não foi. O vento desfolha os plátanos, mas as folhas ainda são verdes na descida da minha rua, na correnteza das águas novas. Quando forem da cor da secura, apanho uma delas, como faço todos os anos, e guardo-a em repouso sobre a lenha. A do ano passado lá está, com nervuras curvadas, com rasgões nos recortes, esperando a sucessão das folhas das árvores, dos dias da casa, dos meus outonos.


Licínia Quitério

10.10.11

OUTUBRO



Desatento do calendário, este outubro rejeita agasalhos, resiste em tons de um azul espantoso, anoitece em crepúsculos doirados. Há um desacerto no olhar dos homens e no adejar dos pássaros. Incêndios maculam a paisagem e atemorizam as gentes. Não é próprio do tempo, diz-se, com os braços a esconder um embalo de frescura. Está tudo mudado, diz-se, e há um vago susto na curva dos ombros dos velhos. Os geniozinhos da floresta dão gargalhadas miudinhas. Eles preparam o imenso manto do inverno, que há de vir, que há de vir...


Licínia Quitério

6.10.11

OS SINOS



Hemingway disse-nos por quem afinal dobram os sinos. Os sinos que melhor conheço deixaram de dobrar. Não, não acho que seja um bom presságio. Na vida e na morte, os sinos ajudam a transpor os imensos muros de silêncio. Um sino, um seno, um seio - curvas ideais que nos enformam, no repique ou na mudez.

Licínia Quitério



3.10.11

LUA



Apetece dizer: com luz tudo se faz e se desfaz. Assim a noite é mais ou menos noite se a lua se levanta e cresce, ou se enche, impante, ou diminue ou encobre o rosto. Lua de Romeu chamando Julieta, de Pierrot em lágrimas por Columbina, lua dos gatos das cidades, de concílios de lobos em clareiras, lua de prata no píncaro da serra, lua vaga de contar contos no patamar do sono. Lua feiticeira que transfiguras a noite e os seus espíritos. Que vê o teu luar que meus olhos não sabem?

Licínia Quitério


27.9.11

PÔR-DO-SOL 2



E mar e céu se entendem, se confundem, se incendeiam. Há um barco parado ou a sombra dele. Em contra-luz, em frente à luz, a casa espera. Doem-lhe as traves nos gritos das gaivotas. De oiro e de sangue as palavras perdidas nos cais de anoitecer. Salgados os olhos das mulheres. Escurece.

Licínia Quitério

26.9.11

PÔR-DO-SOL




Um fogacho, um farol, um resplendor, uma afirmação, uma descida suave, suave, um beijo de luz, um mergulho de fogo, uma rendição. Finda a tarefa de fazer o dia, ele aí vai, deixando à noite um berço morno. Foi apenas mais um pôr-do-sol. Apenas isso.

Licínia Quitério

13.9.11

AS LUMINÁRIAS



Não, não te pedi que semeasses luminárias na seda salgada da tarde. É mesmo coisa tua. Gostas de me fazer surpresas, de me oferecer o que não tem preço. O teu vulto em contraluz é igual ao recorte que os meus olhos vêem na brancura das paredes do Verão. Sobressalto-me a pensar que podes escorregar na estrada dos limos e cair à água. Tranquilizo-me. A chuva de luz reflecte o teu retrato. As luminárias voltarão. Na próxima tarde, no próximo Verão, na próxima praia das nossas vidas.

Licínia Quitério

12.9.11

TÃO POUCO BASTA



Tão pouco basta para ficar assim diluída, distante, demorada, assombrada, ausente, pateticamente feliz, pateticamente lacrimosa. Na viela que me atravessa, no rasgão de prata a que se chama mar, na barra azul-azul, no oiro da tarde arredondando esquinas, esquadrias. Tão pouco é este tudo, partícula de um tempo efêmero e absoluto. Lamento de gaivota, rumorejar de folhas, cheiro a vísceras da terra, palavra perdida, mansa, indecifrada, minha.



Licínia Quitério

15.8.11

A PRAÇA



Os frutos da terra, os frutos do mar apresentam-se. Sobre as terras, sobre as águas, a coberto de sol e chuva ou expostos ao que do céu vier, os mercados existem por aí, mundos fora. Com maior ou menor ruído, encorpadas gritarias ou silêncios de freguesia ausente, os mercados resistem. Alindam-se, alinham-se, arrumam saudades de outras saudades. Fui ali à praça, demorar o olhar na grande faca espetada na grande abóbora, espantar-me com o ritmo ameaçador do afiar de outra faca pela peixeira de lábios finos e cerrados, cheirar o estendal de flores, adivinhar o cansaço dos velhos poisados em caixotes, remoendo amarguras entre o tempo do pessegueiro e o da jovem que desdenha a pele dorida do pêssego. Ó querida, ó linda, hoje não quer nada meu?


Licínia Quitério

8.8.11

A BARCA

3.8.11

FELIZMENTE


Felizmente há as pedras, as flores, os frutos, os bons humanos que as talham, as plantam, os colhem. A harmonia do cosmos não falha, nem há estrelas de perder ou ganhar.


Licínia Quitério

27.7.11

A HERA




A hera é a obstinação, a frugalidade, a elegância, a discrição, a força. Invasora lhe chamam. Eu digo que um sopro animal lhe anima o traço que segue, persegue, cavalga, abraça, incorpora, expande. Um réptil vegetal ganhando novas caudas, novos membros. O triunfo sereno do grande verde. Observo-lhe o progresso e alimento ainda o espanto pela vida.

Licínia

HÁS-DE CONTAR-LHES



Hás-de contar-lhes como atravessámos os serões com uma faca nos dentes, aguardando as pancadas secas na porta das traseiras. Que só podiam ser três, com um segundo de tempo entre elas medido. Abria-se Sésamo e a conversa folheava histórias com ladrões de pão e de futuro. Declarávamos que as asas da verdade seriam velozes e seus rumos altos e certeiros.
Hás-de dizer-lhes como voltámos ao claro-escuro dos pátios onde deixáramos as construções de saibro e chuva, para nos alegrarmos com o germinar das sementes.
Não lhes dirás que alguns deles rapinarão as águas, nem que outros soltarão os cânticos purificadores da sujidade das ruas.
Deixa que riam quando uma cigana lhes ler a sina na palma da mão.


Licínia Quitério

A CIDADE



Nunca entendeu a cidade. As ruas como serpentes, subindo e descendo colinas, num alvoroço de carros e de gentes. Becos, travessas, calçadas, em profusão. Largos, praças, pracetas. Sabia que lá no fundo se deitava o rio. Dele o cheiro de marés e marinheiros de travessia. Dele a neblina sonolenta a roçar as portadas, a assustar as sardinheiras. Quantas vezes se perdeu na traiçoeira malha de caminhos? Insistia. Retrocedia, aceitava o desafio de uma curva em cotovelo, seguida de outra e outra e mais outra. Dobrava as esquinas que para serem dobradas foram feitas. Por vezes, sentia cansaço e parava num miradouro. Aproveitava para ganhar pontos de referência: uma igreja, um obelisco, um jardim, um prédio assustadoramente alto. Não voltaria a perder-se. Mas a memória estava gasta de lembrar os seus mapas interiores. E voltava a perder-se. Desistiu de entender a cidade. Aprendeu a viver nela sem tentar decifrar-lhe os enigmas. Tranquilamente, percorria os seus labirintos, deixando o acaso escolher as direcções, até que um dia se encontrou em frente de um portão entreaberto, ao fundo de uma ruela sem brilho. Ia jurar que nunca ali tinha passado. Sentiu um arrepio quando o transpôs. Olhou para trás e viu a cidade larga, limpa, sem serpentes nem neblinas. Mas longe, longe... E seguiu em frente.


Licínia Quitério

19.7.11

VOEMOS!



Voemos, pois! Saudemos o grande azul, a brancura luminosa dos gelos, a estrada aberta às nossas asas, miraculosas asas, filhas das madrugadas dos loucos sonhadores. Continuemos o sonho, o voo. Nada mais importa.


Licínia Quitério

21.6.11

O EUCALIPTO



Foi abaixo de vez, o grande eucalipto meu vizinho. Possivelmente incomodava o muro velho, o dono do terreno. Foi cortado e pronto. Ontem havia um cheiro intenso à seiva que nos dizia da ausência da árvore. Guardo alguns dos seus pequenos frutos que espalhava pelo passeio. Costumava oferecê-los à minha velha Mãe, quando já não podia sair e encontrar-se com as árvores que amava. Guardava-os nos bolsos e as mãos dela traziam-me florestas. Pieguices. Tudo tem um fim, não é? Ficou uma foto que dele fiz, ao subir a rua em manhã de sol.


Licínia Quitério

14.6.11

EXCESSO



O azul impossível acontece e nele se recortam o prato branco e os fios que um dia trouxeram as vozes e as luzes do céu à casa. Por instantes, o gato entra no quadro e justifica a velhice do muro, a falência dos fios, do prato. Está vivo e nervoso, o gato. O excesso de azul pode apagá-lo.


Licínia Quitério

13.6.11

O SENHOR POETA



Eu era muito, muito pequena, quando ia almoçar com os meus pais ao restaurante "Irmãos Unidos", no Rossio. Um quadro enorme na parede atraía os meus olhos de criança em descoberta. Um senhor, pintado aos quadradinhos, com os pés curiosamente traçados por debaixo da mesa em que escrevia. E havia o chapéu, tão parecido com o do meu pai, talvez também comprado ali ao lado, na Chapelaria Rua. Explicaram-me que o senhor se chamava Fernando Pessoa e era poeta. No restaurante havia um senhor que tinha de apelido Guisado e que conversava com o meu pai num outro lugar, lá dentro. Era tudo muito engraçado naquele sítio. Durante muitos anos não voltei a ver o quadro com o senhor pintado aos quadradinhos.

Quando o reencontrei, lembrei-me da almofada de couro preto que me punham na cadeira para eu chegar melhor à altura do prato e contemplar o senhor poeta.


Licínia Quitério

10.6.11

QUANDO...




"Quando a semente se aninhou na terra, começou a contagem das horas, dos dias, dos meses, dos anos, muitos anos de viver o tempo de ser árvore, sombra, alimento, estátua viva."


Resposta a desafio em http://outrostemas.blogspot.com/

Licínia Quitério

O COMUM DOS DIAS



O que está dentro. O que está fora. O que está longe. O que está perto. O que se vê. O que se adivinha.  Colagens. Reflexos. Ilusões. Olhares. O comum dos dias.

Licínia Quitério

2.6.11

QUINTA-FEIRA DA ESPIGA


Quinta-feira da Espiga. Assim se chama e por esse nome se festeja hoje, por muitos lugares deste País. Invocação dos cereais, da abundância, louvor e prece a todos os deuses que queiram matar a fome a todos os homens. Celebremos, então, o nosso dever de homens repartidores do Pão!

Licínia Quitério


22.5.11

A MENINA LAURINHA

Ouvi um leader partidário dizer que os processos de exploração por aí anunciados não têm nada de novo. São iguais ao que foram sempre.
Foi quando me lembrei da Menina Laurinha, seca de carnes, de perninha fina e arqueada, com o cabelo naturalmente ondulado, muito bem fixado na cabeça de andorinha. Toda a gente a conhecia e muitos a cumprimentavam com humildade e alguma subserviência. Nunca se sabia quando se poderia precisar de bater à porta da Menina Laurinha que espreitava aos arabescos de ferro forjado, depois de entreaberto o pequeno postigo. A Menina Laurinha emprestava pequenas e grandes maquias e cobrava juros como bem entendia. Não se ficava por aí a segurança da emprestadora. Exigia penhores que podiam, conforme o pedido, ser o fiozinho de oiro do baptizado do petiz, os brincos de platina, única relíquia sobrante do casamento, a “fazenda” de terreno, herança dos pais, o “prédio de casas”, verificada que fosse a ausência de hipotecas e tudo, tudo o que a Menina avaliasse como valor bastante a cobrir capital e juros, caso o miserável não cumprisse. E avisava os mais pobres, alguns deles “criados” dela e da família poderosa: Agora vê lá se o teu homem bebe menos vinho e se pões o teu mais velho a trabalhar que já chega de escola.
Morreu de grande idade, a Menina Laurinha. Encontrei-a uma vez, inesperadamente, em Palma de Maiorca, numa excursão de veraneio. Aproveitava os últimos anos, que bem merecia algum prémio pelo que tão bem tinha sabido orientar a vidinha. Não casou nem nunca lhe conheci amores. É natural. Com a falta de carnes e aquele oiro todo, bem se livrou de algum malandro que lhe quisesse arejar a fortuna. Deve ter morrido tranquila, rodeada de todos os santinhos de que sempre tratou com esmero e devoção profunda.
Bem dizia o leader partidário que há pouco ouvi. Nada de novo nos mecanismos de exploração. A Menina Laurinha era tal e qual os senhores do FMI. Até feiazinha como eles.

Licínia Quitério

20.5.11

A MATILDE



A Matilde está sempre bem disposta, enérgica, faladora. Gosta dos clientes e os clientes têm respeito e carinho por ela. É ainda uma jovem, morena de olhos negros, sem pintura, que a cor do sorriso basta para a embelezar. Sabe muito do seu ofício. Dá atenção às perguntas dos agricultores que a consultam. Conhece todos os bichos nefastos às hortaliças, às árvores, às flores. Fala das pragas no tempo exacto em que se anunciam e avisa dos cuidados a ter, dos prazos a respeitar. Pergunta pormenores sobre o aspecto das espécies doentes, pensa um pouco e arrisca um conselho, sem imposição, apenas com a autoridade que o saber reconhecido lhe confere. Pergunta pelas melhoras do limoeiro que teimava em adoecer e fica feliz por saber que o remédio resultou. Atende várias pessoas ao mesmo tempo. Dá os “bons-dias”, as “boas-tardes”, diz “está boazinha?”, “desculpe lá a demora”, “escolha à su vontade”, com a pronúncia cantada de camponesa para camponeses. A loja da Matilde é um lugar apertado, onde ninguém está mal-disposto e ninguém discute sobre a vez de ser atendido,  graças, em boa medida, à Matilde que sabe gerir os produtos e o bem estar das pessoas. Os pretextos que eu invento para ir à loja da Matilde, eu que não sou camponesa! Hoje trouxe um mangerico, ainda “em planta para dispor”. Quis um saquinho de plástico transparente que deixasse ver a minha plantinha. A pouco e pouco tenho ganho alguns créditos na loja da Matilde. De vez em quando meto conversa com um ou outro cliente e sempre aprendo alguma coisa dos estragos da geada, do atraso da batata, do preço do adubo e até reciclo o meu vocabulário. Ali um tomate chama-se um tomate e  não um legume, e a nabiça tem rijeza e não fibra. Pessoa influente da minha terra esta Matilde, com  a sua pequena loja com cheiro a terras, a pimentos, a amores-perfeitos.

Licínia Quitério

13.5.11

TRANSGRESSÕES



Colhidas à beira do passeio, pendentes de muro de jardim abandonado, rosas de toucar, garridas e de curta vida. Postas em jarra de vidro de outra geração, arrumadas sem esmeros de florista,  por alguns dias vão ser um sorriso aberto e generoso sobre a minha mesa de saudades. Gosto de me picar a colher rosas com cheiro a beijo roubado. Gosto de fazer caminho proibido sobre a relva e aposto que ela gosta de sentir a leveza súbita dos meus passos. Nas infantis transgressões, encontro o sabor indefinível da liberdade. Como Gabriela, eu nasci assim: sapato não, seu Nacib.

Licínia Quitério 

12.5.11

PARECEU-ME




Pareceu-me avistar um melro junto ao candeeiro. Fotografei-o antes que se escondesse atrás do arbusto. Na foto, o melro, se o era, não passa de um ponto negro, mas nela apareceram o meu ninho, o ninho dos meus amigos, as torres que me viram nascer, o velho eucalipto, o novo jardim e talvez, quem sabe, um longo capítulo duma história que em mim se anda a escrever.



Licínia Quitério

Nota: Texto e foto são a minha colaboração desta semana em http://outrostemas.blogspot.com/, um lugar a visitar e acompanhar.

6.5.11

LEITURAS




À MEMÓRIA DE RUY BELO, POR EUGÉNIO DE ANDRADE.
DOIS DOS "MEUS" POETAS.
UM TEXTO QUE GOSTO DE LER, ASSIM COMO QUEM REZA.

Licínia Quitério

5.5.11

UM DIA DE VIDA



Defendida por fortes espinhos, de corpo suculento, guardador das ínfimas águas, multiplicando-se em novas redondezas que de si são cópias, esta mãe de bairro pobre todos os anos anos me dá filhas-flor, suavíssimas, gloriosas, sedas puras. No dia de vida que lhes cabe, aguardam o despontar da luz e abrem, dadivosas, formosas, donzelas sem vício e sem cuidado. Com o cair da tarde, vão fechando as corolas, imperceptivelmente, até que a noite as faz murchar, tombar, sem se ferirem, sobre os espinhos da mãe. Cumprem as suas vidas brevíssimas e plenas que eu aguardo e vigio, num misto de enlevo e melancolia.

Licínia Quitério

2.5.11

BANDEIRA



Apoiada no muro pintado de inverno, entre plantas pobres, cansadas, arrendada pela insolência do granizo, ameaçada pela gulodice de insectos, eis a  flor, seda vibrante, labareda de um fogo muito antigo, soluço vermelho, canto de galo na madrugada, sino de festa, vida, vida. Bandeira vitoriosa do meu jardim de vasos.

Licínia Quitério

28.4.11

NÃO DURAM



Não lhes resisto. Não duram, dizem-me. Eu sei. Hoje são botões perfeitos, rigor de forma e de cor, beijos de juventude, sorrisos de infante, piscar de olhos da perfeição. Não devia, mas colho-os. Um, só mais outro, outro ainda. Há-de haver uma casa dos botões do meu vestido que os recebe. Pingos de garridice no meu tempo de tantas rosas. Logo mais terão uma pequena taça com água que os acolhe, os compensa de um mau trato por amor. Vejo-os abrirem as múltiplas pétalas, espreguiçarem-se em círculos cada vez maiores. Enchem a taça. Deixaram de ser botões. São flores. Chegaram à idade adulta, numa pressa de adolescentes. Amanhã serão velhas e as pétalas enrugadas, desbotadas, cairão sobre a mesa. Demoro a deitá-las fora e o meu ligeiro remorso de as haver colhido amolece com o perfume leve que persiste nas madeiras.



Licínia Quitério

27.4.11

LEMBRAS-TE?



Com o sol de Abril vêm os caminhos velhos, os amigos velhos, a nostalgia de saltar à corda, de saltar a fogueira, de saltar o muro, de saltar por saltar. E há a terra, a mesma, sob o asfalto, sábia, silenciosa, a guiar-me os passos. É por ali, lembras-te?

Licínia Quitério

22.4.11

ABRIL E MAIO




Uma experiência caseira.

Licínia Quitério

19.4.11

GATA



Nesta tarde de chuva, arredondo-me, enovelo-me, imobilizo-me, escondo-me, protejo-me. Fico assim, ausente, em sono demorado, por dentro do meu pelo de gata, do meu nome de gata, do meu tempo de ser gata.

Licínia Quitério

14.4.11

CRAVEIROS DO AR



Vivem do ar, têm folhas duras, aguçadas, de cor acinzentada, como se estivessem numa morte latente, durante parte do ano. Mal nos damos conta de que se multiplicam, em novos tufos que, se os desprendermos dos fios quase inexistentes que os ligam à mãe, por sua vez se multiplicam. Chamo-lhes "craveiros do ar", expressão que herdei da minha Avó que os tinha pendurados nos ramos da grande pereira de "peras pardas". Depois de minha Mãe, chegaram até mim e vivem suportados por uma rede de plástico. Hoje surpreendi-os com a primeira flor. Apenas ainda um botão que se desenvolverá numa longa inflorescência, galante de vermelhos e azuis. São uma excentricidade, uma fuga à regra, uma interrogação, uma prova de sobrevivência conquistada na parcimónia, na discrição. No meu jardim minúsculo não há só vasos. Também há milagres.


Licínia Quitério

13.4.11

PALMEIRAS



Era uma vez uma palmeira e mais quatro. Eram os meus anemómetros que me diziam, quando de manhã abria a janela, qual a intensidade e direcção do vento. Ontem ouvi o barulho horrível de uma serra eléctrica. Não queria acreditar. As palmeiras foram condenadas à morte. Os colossos tropicais, que alguém em tempos idos ali fez plantar para dignificar a vivenda, estavam a ser reduzidos a grossas fatias de madeira com heras e polipódios agarrados. As árvores são assim - dão guarida e sombra aos mais fracos. Na vizinhança dizia-se que estavam a estragar a casa. Acredito. Palmeiras não são mangericos. Mesmo fora do seu habitat natural, crescem, encorpam, frutificam, impõem-se. Porventura os donos não sabiam deste querer vegetal, desta força que plantavam. Estragavam a casa. Acredito, mas fico triste. Como é que agora vou saber donde sopra o vento?


Licínia Quitério

8.4.11

A OCIDENTE



Aqui a ocidente é que me vejo. É esta a praia a que pertenço. A tua imensidão foi tudo o que aprendi. De nada mais preciso. A vida me acontece.

Licínia Quitério

3.4.11

O PÓ DO TEMPO



O pó do tempo, as manchas do tempo, os estragos, os apagões, os hiatos na memória, tudo o que foi, e o que já não é, e o que ainda é, e o que ficará depois de nada ser. Caminhadas, cavalgadas, paragens, viragens, retornos, novas caminhadas, cada vez mais lentas, mais curtas, mais serenas, cada vez mais perto, cada vez mais longe. Sobre os silêncios, os ecos, os reflexos, as miragens, as imagens, as sombras. A lembrança de um vestido de flores, de uma caixa de bolos, de um colo morno, de uma cantilena, de uma zanga, de um mimo, de um ninho. Olhar para trás e divisar o princípio. Acertar o passo, uma vez mais, caminhar, devagar, já sem pressa, cumprir a estrada, o salto, o voo. Tão longe o ninho!

Licínia Quitério

FLORBELA



Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...

Florbela Espanca

2.4.11

NOITE





A noite tem janelas que nos querem bem. De ténues luzes, de arrendadas cortinas, quem sabe um gato no parapeito. É doce o tempo das janelas da noite.


Licínia Quitério

1.4.11

CESÁRIO



Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.



Cesário Verde, "O Sentimento dum Ocidental"

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