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17.11.13

NEVE




Caiu neve na serra. É o que ela diz, acrescentando açúcar no café, com a lentidão da manhã enfiada nos dedos. Queria dizer mais coisas, outras coisas, mas a frase saiu com um ponto final e ele não é homem de continuar um texto, de o ajudar a não morrer assim, seco, impertinente. Tem o jornal para ler e, na sua importância de leitor, fecha-se ao mundo, fecha-se à voz dela, que outra atenção não merece, que ela costuma demorar-se em oratórias, enquanto bebe o café, enquanto toma duche, enquanto faz amor. São assim as mulheres, é o que ele afirma, passado o viço, passado o vício. Falam e só para elas falam, no desfiar de lamentos, de  toadas dos tempos de embalar, dos tempos de dançar, dos tempos do viço, do vício.
Se caiu neve na serra, se o filho não apareceu, se a outra não fala, só sorri, se o outro acrescenta frases às frases dela e sorri, se tudo há-de ter seu caminho e foz, é porque a hora virá de a neve derreter, de se querer lago e afogar.

Licínia Quitério

6.11.13

TEJO



Dos Pirinéus não se vê o Tejo. Digo eu que não subi ao alto mais alto dos altos montes. Tão pouco se vê quando tão baixo se vive. O mundo fica todo muito pequeno, inteirinho ao alcance da mão, do olhar. Dizem-me: os Pirinéus ficam ao fundo da rua, mas da minha mão ao fundo da rua é tão longe que eu fico a acreditar no que me dizem e não vou até lá ver os Pirinéus. Dizem-me: dos Pirinéus não se vê o Tejo e eu acredito. Acredito porque nunca subi ao monte mais alto entre os mais altos donde provavelmente se vê o Tejo. Nem sequer irei ao fundo da rua olhar os Pirinéus que, acredito, lá estão esperando por mim, sabendo que não irei. Bem melhor é ficar aqui, no nascer da rua, a ver a chuva cair e um rio a crescer, envergonhado, com vontade, esse sim, de chegar ao fundo da rua e dizer aos Pirinéus que lá do alto mais alto poderão avistar um riozinho seu irmão, a correr à procura de um país onde lhe chamem Tejo. Os Pirinéus vão acreditar no riozinho nascido na minha rua porque pensarão que ele sou eu nos meus tempos líquidos de correr montes e vales e me deitar no Tejo como em cama de nuvens de cidade muito amada. Dela me lembro agora, no meu tempo opaco de ficar e de olhar e de dizer Tejo como quem diz Vida. 

Licínia Quitério

3.11.13

IR E VOLTAR



   A gente às vezes vai e procura e encontra ou encontra o que não procurou ou desiste de procurar, tudo sempre sem saber porque procura. Andamos mundos, conhecemos gente, esperamos sempre mais, mais respostas, mais um passo, mais um minúsculo passo que nos ponha defronte da montanha mais alta, do pico mais aguçado, do ar mais rarefeito, da respiração da criança no sono, do claro-escuro da matinée de outrora, do silêncio branco da partida. 
   A gente às vezes volta, acrescentada de perguntas, de gente, de caminhos antiquíssimos, de coisas feitas, já rotas, já desfeitas, e de outras a nascer, que saberão dizer que ali nos viram, caminhando nas sombras de um sol a pique, com o espanto a crescer por ali estarmos, defronte dos montes, nomeando o pico mais alto dos picos que nunca subiremos.

Licínia Quitério

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